[Epístola terceira]
Tu suplicas a luz, imploras braço
que reja benfeitor teus passos débeis;
quanto o vate puder, no irmão confia.
Farei por te arrancar ao génio torvo,
que ao baço lume de banais sofismas
por sobre espinhos te conduz à campa.
Já que na arena entrei, não deixo a arena
sem o ver a teus pés; nem sempre o monstro
das quedas se há-de erguer com fúrias novas.
*
«Pouco pode a Razão nas perdas grandes.»
Sim, da paixão nos ímpetos primeiros;
sim, quando externo auxílio a não conforta;
sim, sim, quando um só ai não sofre as dores;
mas se indulgente as sofre, e revestindo
pela mão da amizade as próprias armas,
com o mal já demorado entra em duelo,
a passo e passo o acossa, em forças cresce,
alcança um novo loiro a cada golpe,
e enfim triunfa. Abraça este ditame
por compaixão de ti; jaz nele a base
da Moral e Ventura. Há forças grandes,
124além das usuais, ocultas no homem;
um brio generoso, um prigo instante,
impulsos de entusiasmo, as manifestam;
cada rasgo da Historia é prova disto.
Onde há resolução não faltam meios;
crê poder, poderás. O entendimento
não fora etéreo dom, se apenas hábil
a mar de leite e a ventos bonançosos,
da consternada mão soltasse o leme,
quando escarcéus, tufões, e em frente as Sirtes
lhe gritam que manobre, ou que se afunde.
*
«¿Eu por que hei-de viver? bradar te escuto.
«¿Por esta Pátria? não. ¿Por medo à morte?
«não, pois que não é mal. ¿Pelos prazeres?
«não os há para mim.»Pára. Indaguemos.
*
¡Tanto abunda em lauréis a pobre Elísia!?Da glória tua a Pátria não carece.
125
mas de virtude, de saber, de glória;
pela mão do Imortal abrange a terra;
todos os reinos por províncias conta;
em número restrito, em força imensa,
durou, durará sempre; igual admite
a Cruz, a Meia-lua, Odino, e Jove,
de Sparta o foro, o trono de Bizâncio,
o senado de Roma, o de Veneza,
a caravana errante, e os nus selvagens;
tem por leis a razão, e a consciência,
por defensora a paz, o bem por norte,
É esta dos filósofos a Pátria.
O servi-la é, servindo o que há mais belo,
ter no próprio trabalho a recompensa.
Se afeita ao ar, ao céu, e ao chão dos Lusos,
só chamas Pátria a isto, inda te clamo
que a idolatres, que é mãe, que é sempre justa.
Os teus concidadãos sou eu, são poucos,
são dezenas que vagam derramados
na chusma dos milhões; nem todos eles
se conhecem, nem todos são nascidos;
mas nó de simpatia os une, os torna
mutuamente precisos, mutuamente
valedores, validos; sem ajuste
os mesmos fins unânimes procuram:
dos ruins fazer bons, dos bons ditosos;
são estranhos, e irmãos; rivais, e amigos.
Eis a Pátria de Jónio, e a Pátria tua;
eis a que ele serviu, a que o chorava
perseguido dos maus, a que o deplora,
mais por ti que por ele, a que lhe esparge
por minha mão sobre o sepulcro as rosas.
¿Esta em que te merece ódio e vingança?
¿por que desejas arrancar-lhe as cinzas
do cidadão que amou? ¿por que, inumana,
privá-la juras de futuras palmas?
126¡Chamas-lhe ingrata a ela! és tu a ingrata,
a sacrílega és tu, quando egoísta
depões por grave o público interesse.
*
Pôs a todos seu cargo a Natureza.
Suave, ou doloroso, é necessário
levá-lo à meta onde ela nos aguarda;
largá-lo e adormecer, é rebeldia
que a revolta, é vileza odiosa ao mundo;
rara lágrima afaga os restos desses;
nenhum cipreste os vela, nenhuns votos
lendo o epitáfio alegrarão seus manes.
Nem devia bastar que a voz da Fama
lhes troasse ignomínia: havia o mundo
em paga do abandono abandoná-los,
membros inúteis cometer às feras.
*
«Se a morte não é mal, não ma proíbam»
vozeias tu. ¡Misérrimo triunfo!
Não é mal para ti quando a tiveres;
mas procurá-la é mal, porque é defeso.
A vida que depões é também nossa.
Amostra-nos um título, em que todos
te dispensemos dela; eia, presenta
(se o tens) da Natureza o passaporte.
Mil o tiveram, Décio, e Codro, e Cúrcio,
na salvação dos seus; Catão, no exemplo
com que exaltasse os ânimos vindoiros;
Régulo audaz, no público interesse;
Laocoonte, no acudir aos filhos débeis;
Pilades, no livrar seu nobre amigo;
no livrar finalmente os seus amores
127
de Admeto a esposa, o esposo de Cornélia;
útil e honrosa audácia em todos brilha;
¡maldições ao que ousasse desviá-los
de tão belo morrer! choroso e ufano,
eu de hinos lhes cercara a ilustre queda.
*
Dou-te mais: até filha do egoísmo
pode espontânea morte haver desculpa;
¿mas quando? quando ao auge insuperável
corpórea dor subiu, quando esgotámos
a esperança, o remédio, o sofrimento.
Nada então nos constrange a prolongarmos
tortura atroz que multiplica a morte.
Corélio virtuoso assim despede
dos membros lesos a existência horrível;
Plínio o amou, Plínio o chora, e não o acusa. 1
Têm as dores morais outro carácter:
nenhuma há sem remédio; a experiência
mostra que ou cedo ou tarde, o tempo as doma,
e cedo, quando o siso aplica os meios.
*
Há para ti, Francília, inda há prazeres,
e hão-de vir a brotar dentre os espinhos,
quais eu mesmo os senti. Pois que eu respiro
junto de um teixo que surgiu do Averno
para esconder-me aos Céus coa imensa rama,
pois que inda oiço cantar quando Ela é muda,
abre o seio à esperança. Alma de fogo,
128
no amor extrema, extrema na saudade,
não foi a tua só. Tu, mais ditosa,
desfrutaste o prazer mais longos lustros,
mas não amaste mais. Francília, há horas...
que abrangem no seu voo eternidades;
paz a lembranças vãs, vãs como um sonho,
como o seu nome vãs. Na paz que a cerca,
ou Anjo ou pó, suas memórias durmam.......................................................................
*
Há para nós, Francília, inda há prazeres;
não esses de que o vulgo se embriaga,
purpúreos, tumultuosos, passageiros,
belos, mas oucos sempre, ou fel por dentro.
Nesta vil terra os nossos não brotaram:
caem dos Céus seus germes invisíveis;
florescem para croa da virtude;
exalam puro incenso, e de hora em hora
de fruto benfazejo a terra alastram.
Outros não tem, não quer, nem sabe de outros,
a Viuvez, natural e venerando
sacerdócio, supremo entre os penates.
Grave, simples, moral, só reconhece
gostos morais, e símplices, e graves.
Como ante a noite, em número infinitas,
flores, filhas do sol, que ao sol brilharam,
despem galas, de aromas se descingem,
caindo umas no sono, outras na morte,
enquanto raras mansamente abrindo
cortejam com seus plácidos perfumes
a mãe da silenciosa escuridade;
assim, da Noite irmã, da Noite amiga,
sumido o sol dos dias de ventura,
ó Viuvez, ¡que de incógnitas delícias
te vêm brotando a par!
129
*
Quando ao princípio
a Natureza Mãe disse aos prazeres
«Vós sede a geração, vós sede a vida
«da humana condição», prevendo as fases
vários os fez, e análogos a todos.
Alternam-se no globo a noite e o dia,.
a florígera quadra, o estio aceso,
o outono grave, o tumultuoso inverno.
Aqui, sublime a terra aos céus levanta
meditativa a fronte montanhosa;
ali, por vale ameno se espreguiça;
aqui, sussurram messes a abundância;
mais longe, como cheio de um remorso,
volve e revolve o mar eternas fúrias;
no bosque anoso e fundo o mocho geme
solitário; o rosal festivo hospeda
a luz da aurora, as auras que madrugam,
da jardineira as graças e os desvelos,
das aves o alvoroço, o amor, e os cantos.
Assim, única e imensa a Mãe de tudo
ao drama dos mortais varia as cenas;
em relação com o mal os bens coloca;
e, se fatal nos fere, apenas fere,
repentino dictamo ao pé nos cria.
*
Vai, segue inspirações que não te iludem.
Ou eu me engano, ou força irresistível
te impele à solidão. Lá sim, te aguardam
no prazer o dictamo, a cura, a vida.
*
Nos corações viúvos ardeu sempre
vital instinto de evadir-se ás turbas;
míope compaixão nos que os rodeiam
130
sempre os reteve. A solidão campestre
sabe os segredos teus, que o mundo ignora,
fala na tua Língua, ao mundo estranha;
e em vez de forcejar para arrancar-ta,
faz-te, coa força mágica do tempo,
cair a farpa da cansada frida.
*
Se coubesse à Razão ditar os erros,
eu a julgara autora desse culto,
que em auras, fontes, árvores, colinas,
presentes venerava amigos Numes,
Numes sem raios, dadivosos, ledos.
¿Quem há, que alguma vez, ou quando o peito
lhe abundava de amor, ou quando escuro
melancólico acesso o anuviava,
não sentisse, do campo entre as delícias,
certos entes aéreos, revelados
por sons vagos, bulícios passageiros,
cheiros sutis, e inspirações estranhas?
¿Quem há, que não prestasse um pensamento,
um afecto, uma voz, quer de censura,
quer de dó, quer de aplauso, ora à cascata
de túrbido tumulto, ora ao favónio
de hálito suspiroso, e em noite estiva
à filomela que de amor gorjeia,
e à pobre rola que de amor se gasta?
Mais de uma ardente lágrima foi seca
pelo campestre sol; mais de um suspiro
foi afogado respirando as auras.
Meios de consolar (crê-me, Francília),
onde a Razão severa os não descobre,
encontra-os a formosa Natureza.
Coube-lhe, para alívio de infelizes,
esse condão feliz, de que ao teu sexo
fez coas graças um dom quando o formava.
131
*
¿E que direi da activa jardinagem?
«Ele as flores amou que tu prezavas;
«preza-as ainda; as que plantou, cultiva;
«dispostas por tal mão ser-te-ão solenes.»
Assim meu coração compadecido
outrora, em melhor tempo, e sem cuidá-lo,
em versos consagrados a teu nome
prematuro conselho adivinhava.
Florinhas órfãs dele hoje reclamam
teu maternal desvelo; ¡ah! se lho deres,
ingratas não farás.
Já te prevejo,
desde o albor matutino até que os astros
pelos campos do céu Héspero agregue,
renovando entre as flores a existência.
«Por mim nasceram, para mim despertam
dirás tu; «para mim, como à porfia,
«rivalizam na gala, na elegância;
«o meu olhar, como um favor disputam;
«como um favor supremo os meus socorros.»
Serve-las; no servir restauras forças;
no ar de teus jardins purificado
bebes saúde, e no perfume gozos.
¿Quem há, que sem prazer respire as rosas,
os jasmins, a violeta. Inda os que ignoram
serem de amor eflúvio estas fragrâncias,
sentem, gozando-as, voluptuoso enlevo,
cerram seus olhos, e um suspiro oculto
dão à lembrança de um amor primeiro.
*
Depois, ¡que distracção neste cuidado
de velar, de manter onde ele as tinha
132as próprias filhas das primeiras raças!
¡que encanto o cultivá-las em seu nome,
quasi em seu culto, e, num delírio amante,
sob a lua calada, em tardas horas,
flórea hecatomba desfolhar-lhe aos manes!
*
¡E aquela paz, aquela meia-vida,
que nas plantas se encontra!? Às plantas coube
o meio entre o que é bruto e o que respira.
Mudas e imóveis como a rocha e a terra,
no nascer, no medrar, no amor, na morte,
já sócias do animal, já sócias do homem,
alegres sem prazer, sem gosto amantes,
sem sono e sem velar dormindo espertas,
sem dor enfermas, sem angústia mortas,
¡quanto o seu existir maravilhoso
simpatiza com o teu!...
*
Se te importuna
por ora o teu jardim, se não consentes
prazer que entre os ciprestes se não colha,
não serei eu quem teu desejo increpe;
tem seus foros a dor; quebrar-lhe os foros,
em lugar de a abater dobra-lhe as forças.
Como o potro indomado, se imprudente
um cavaleiro audaz lhe oprime o dorso,
com despótica mão lhe aperta o freio
na generosa boca, e o lado virgem
férreo espinho pungiu, torce-se, espuma,
pula, arqueja, relincha, abala o campo,
e às forças e à destreza opondo as fúrias,
senhor do seu senhor, nos ferros livre
parte fulmíneo, pelos ares solta
133
o freio, o cavaleiro, e volta ufano
a triunfar no vale e rio usado;
assim a dor. Não há para amansá-la,
como a branda indulgência. ¡Ah! se o desejas,
corre embora os sombrios cemitérios,
que inda lá mesmo útil prazer te aguarda.
*
¿Por que negava aos Mortos seu recinto
Roma, Roma tão franca aos vivos do orbe?
¡Que belas surgem árvores funéreas
por sobre as pompas da cidade imensa
dominando! Esta fúnebre verdura,
mas de esperança emblema, este intermédio
entre terra em bulício e céu tranquilo,
estes remotos pavilhões, que indicam
mansa ilhota de paz num turvo oceano,
gravam no quadro frívolo um profundo
cunho moral, dispõem-nos para as perdas,
reprimem da alegria o nímio luxo,
e proclamam valor contra os desastres.No meio das delícias de Ulisseia
Albión e Germânia consagraram,
não longe do teu lar, jardins aos Mortos.
Lá tens, onde sozinha em ócio pasças
a tua cara dor. Se te importuna
ver flores entre campas e ciprestes,
escolhe o de Albión, e ali sê tua.
Para encantar o teu passeio umbroso,
não hás-de carecer dos dois Britanos,
das Noites e dos Túmulos cantores;
levas no coração maior Castália:
o verdadeiro amor. Solta abundantes
lágrimas, em suspiros desafoga
com versos filhos dalma. Ajoelhada,
134
meditativa, sobre as folhas mortas,
ergue a voz para o Céu, para o teu Jónio;
ata as frases de afecto, que interruptas
vos ficaram na terra, e exaure em queixas
toda a abundância da primeira angústia.
Então, já mais serena, divagando
a passo lento e incerto, peregrina
de sepulcro em sepulcro, e lê, e estuda.
Idades, condições, fortunas, sexos,
tudo a morte igualou. De tantos entes
¿não haveria um Jónio, uma Francília?...
e são menos que pó. Como eu reparto
contigo as minhas lágrimas, reparte-as
com todos esses Mortos, e egoísta
o que é geral como único não chores.
Volve a atenção a quantas ali jazem,
a que o tempo cessou na flor dos anos;
dá-lhes quinhão no dó que a ti consagras.
Vê, de mais, ¡que amplidão de amargo Oceano
separou berço e túmulo de tantos!
Foram de estranha Língua os sons que ouviram
derradeiros; sem lagrimas os olhos
que os viram ir-se à terra; e pelas sombras
do verde cemitério ignotos entes
de outro aspecto, outra crença, e de outros usos,
passeiam frios ante as mudas cinzas.
*
Ao levantar-se o luminar das noites,
quando talvez não longe erguer seu canto
filomela, a Francília do arvoredo,
sais e menos opressa aos lares voltas
a restaurar no sono as tuas penas.
Engano-me: as estrelas benfeitoras,
que por cima dos tectos das cidades,
135
colmo de choças, copa de arvoredos,
inspiram sono fundo aos membros lassos,
nem o têm para ti, nem tu lho pedes;
sozinha, e veladora como a triste
alâmpada nocturna, as horas cansas
junto dela encostada ao leito frio;
teu prazer de carpir ali te absorve;
ali gozas teus bárbaros triunfos.
Treme, imprudente; a voz que te há deixado
entre urnas divagar, trovejaria
para arrancar-te a tão letal encanto.
Durante a noite a turva Fantasia
sobre as ruínas do apagado mundo
compõe o seu. Nas horas pavorosas,
em que os vulcões maior terror vomitam,
em que mais torvamente o mar braveja,
em que afoito o punhal e o crime exultam,
contra a Razão rebelde a Fantasia
se emprega em seus danosos malefícios.
A morte vive; as campas entreabertas
soltam manes; escutam-se gemidos;
na nocturna mudez sentem-se estrondos
sem causa; das feições que se adoravam
viva e importuna a imagem se nos pinta
face a face connosco; um braço frio
manso e manso se estende. . . e nos aperta.
Eterniza-se a noite; a manhã raia...
sumiu-se tudo; mas no olhar pisado,
na palidez, no estranho do semblante,
lê-se bem que infernais nos trabalharam
influxos de maléficas potências.
Sem ferro e sem veneno, desta sorte
minam-se da existência os alicerces;
as forças que a mantêm vão cumular-se
no sentimento, activo sorvedoiro
que só quando a destrói desaparece.
136
¡Ânimo! ¡um passo mais! ¡resiste! ¡esforça-te!
¡cobra a saúde, e sentirás com ela
o gosto do existir ir-se avivando;
e os prazeres que inda ora te são dados
te farão reflorir para a Poesia.
*
Se já te alguns mostrei que não previas,
com esses virão outros, e outros muitos,
do tempo, e de ti mesma.
¡Ah! ¿como pude
esquecer eu de todos os melhores,
os da pura imortal Beneficência?
Fadada a consolar, coube-lhe em dote
cofre que entorna sempre, e nunca exaure.
Aqui, semeia o oiro; além, palavras
mais úteis que ele, o próvido conselho,
a segura doutrina, o pronto afago,
o rir que anima, as lágrimas que adoçam.
Francília, esta paixão que me ora dita
os versos para ti, se para os outros
a acolheres no seio, há-de salvar-te.
Não te iludas: nascemos para todos;
viver só para si é roubo aos homens;
vergonha odiar a vida, a que andam presos
mais intresses que o nosso; e sacrilégio,
sacrilégio inaudito, abreviá-la.
*
Se da história fraterna exemplos valem,
escuta:
Nesta praia do Oceano
passa de trinta sóis que em balde espero
da viração do mar perdidas forças.
137
Uma dor, que nem lágrimas encontra,
nem cabe dentro nalma, nem se atreve
a romper pela voz, uma dor tanta,
que ante ela as infernais seriam gosto,
me andava dentro. Ao longo das areias,
dos homens fugidio, costeava
deste mar fundo o eterno murmurinho.
Minha alma era sombria, anuviada
como este céu de inverno. As largas vagas,
correndo, espedaçando-se na praia,
em fofa espuma súbito sumidas,
súbito com mor fúria renascentes,
não eram nem mais vãs nem mais terríveis,
que os pensamentos meus. ¡Se então ao menos
eu tivesse podido, como Aquiles
outrora, à beira das maternas ondas,
horas de ferro amaciar coa lira! . . .
Quando assim me perdia, oiço uma tarde
um clamor lastimoso; amiúdo os passos,
e acho entre a choça aberta e o mar que muge,
uma infeliz. Seus roucos alaridos
vão-se às nuvens; aos Céus pede um milagre,
logo insulta, maldiz, ameaça o pego;
à porta do tugúrio outra sentada
a considera, e chora, e não se atreve
a consolá-la.
Aventurei, saudando-a,
compassiva pergunta sobre as penas
daquela desgraçada, e sobre as suas.
Eis o que soube:
*
Entre estes pescadores
nunca houve um melhor que o jovem Pedro.
Brízida, sua mãe, nada mais via
que o seu Pedro no mundo, ultimo resto
de um longo amor e mui feliz consorcio.
138Nele achava as feições do extinto esposo,
sua voz, seu olhar, e, mais que tudo,
aquele coração que ao seu falava;
toda a sua família era o seu filho.
Por ele e para ele se acendia
lume em seu térreo lar; seu mesmo nome
lhe vinha dele: havia muitos anos
que a não chamavam Brízida, mas sempre
«a mãe do Pedro»; e o nome de Rainha
ninguém lho propusesse a troco deste.
Nele, enfim, resumia as suas posses,
pois não tinha um só palmo em toda a terra,
nem no Oceano o quinhão de um simples remo;
e quem por tudo seu lhe perguntasse,
não perguntava mais que por seu filho.
Com seu filho trinta anos pareceram-lhe
trinta sonhos de amor; e como nunca
o suspirara ausente um dia inteiro,
as transições da idade lhe escaparam,
e com mimos de infância inda o seguia.
A virtude, brasão e antiga herança
da choupaninha inculta, igual em ambos,
dava à mútua afeição penhor seguro.
*
Pedro viu Rosa, amou-a, foi amado;
corações virgens ambos, um momento
lhes devia bastar para encantar-se.
Brízida o conheceu primeiro que eles.
Nas choças dos vizinhos foi falado
o amor de Rosa e Pedro, antes que Rosa
tivesse ouvido a Pedro a mal retida
confissão deste amor. ¡Que de ternura
na virgem! ¡no mancebo que desejos!
¡que alegrias na mãe, que já não sonha
139
mais que o festim da boda, os serões largos
coa sua fiandeira e co seu Pedro
ao seu fogão de inverno, e os mui travessos
netos, gordos, gentis, brincando, rindo,
e alvorotando a casa ora tão muda.
Já prolonga a tarefa pelas tardas
horas da noite, já precede a aurora
co diligente fuso; é que o seu fuso
prometeu-lhe o enxoval.
*
Passaram meses;
já se marcara o dia fortunoso
para além de oito soes. Vinha rompendo
no céu acinzentado a manhã roxa;
Pedro se ergue; esgotada da vigília
sua mãe dorme.
Sai. Vê todo o Oceano
revolto largamente; os pescadores
não ousando afrontá-lo olham mui tristes
onde a rede na véspera deixaram.
Bando de equóreas aves que ali pairam
mostra farta abundância. Uma das cordas
rebentou no escarcéu; não há quem ouse
ir por mar tão cavado a retomá-la;
meio lanço de prémio em vão se ofrece.
Eis chega o moço; outros, dos mais audazes,
reúne; com seu ânimo os afoita;
metem ombros ao barco mais possante,
lançam-no ao pego, e atiram-se-lhe; fogem
da praia, que outra vez pisar não devem.
Ao som de mil clamores agoireiros,
já das rolantes ondas sacudidos,
se embrenham mais e mais na insana empresa.
De montanhas de morte rodeados
os remeiros enfiam; mas seu chefe
140
os conforta, que espranças lhe sobejam.
¿Não é por sua mãe, por sua Rosa,
que se ele expõe? ¿sinais de pesca imensa
não viu no mar? este baixel é novo,
seus remos bons, seus braços incansáveis;
e de mais, lá de cima o está velando
o santo Pescador miraculoso,
de quem há nome, e a cujas aras brinda.
Mas os ventos revoltos se conjuram
contra o lenho, quais lobos que ululando
indefeso redil com fúria investem.
Rugindo estoira o mar em pululantes
serras de crespa espuma intercavada
de voragens horríssonas, medonhas,
quadro que inteiro aclara um sol sem nuvens.
¿Que farão? a arte é nula; as forças, gastas;
nem o elemento indómito suporta
que o remo o fira. Pedro, consternado,
Pedro ergue aos Céus as mãos, lá desde o abismo
procurando com os olhos os dois tectos,
que vê, ou julga ver de tempo em tempo.
Pedro envia o segundo pensamento
à sua Rosa; a sua mãe dera o primeiro.
Toma o remo, fogoso anima os sócios;
lidam de novo. A praia alvorotada
com votos e alarido os acompanha
todo esse dia. A mãe e a triste Rosa
ao barco, já patente, já sumido,
mandam votivos brados, mandam uivos
de desesperação .... Passara o dia,
ia esconder-se o sol ...¡Eis tudo ajoelha!
¡eis férvidas as mãos batendo as faces!
¡eis um só grito uníssono e gelado!
Tudo acabou. Num turbilhão sumiu-se
o barco; todo o mar lá está deserto.
................................................................
141
*
Perguntarás talvez da aflita noiva
qual fosse o fado. A pobre rapariga
vive, e feliz: enlouqueceu.
Diversa
foi de Brízida a sorte. Nem o sono
pôde mais estancar-lhe a fonte ao pranto.
Pálida, semiviva, sobre palhas
vegeta; e mas. . . ¡quão pouco bastaria
para prendê-la terra! ¡em chão sagrado
uma campa, e dizer: «Ele aqui dorme;»
por um ponto sequer pertenceria
ao mundo; o mundo assim lhe está deserto.
Em vão Maria, a sócia inseparável
da sua infância, a irmã do seu consorte,
a sensível Maria, em vão requinta
consolador afago e instâncias meigas.
Em cada tarde, à hora abominanda,
debalde a quer suster, que ao mar não corra;
semelhante a Raquel chorando em Rama,
consolações não quer. Cedeu Maria;
chorando se reduz a vigiá-la.
*
Findo o acesso, voltou cos olhos baixos,
abraçou-se a Maria, e chorou muito.
Mal que encetei palavras de consolo,
interrompe-me.
O esteio exclama o esteio
«que amparava tudo isto, ¿onde está ele?
«¿onde é que está meu filho, ele, o meu filho,
«¿onde meu filho, o bordão destes meus anos?...
142
*
Comecei, misturando co seu choro
lágrimas bem reais, que me lucraram
sem artifício o jus de ser ouvido.
Por si mesma, onde há lágrimas, vem sempre
doce Religião co seu conforto.
Obtive, o que a Razão jamais faria.
Era noite. Apontando para a lua
sobre nós tão serena e tão brilhante,
e depois para os mares cá por baixo
tão feios, tão revoltos, comparei-lhe
com o mundo, o Céu; com o turvo desta vida,
as glorias, o prazer, a paz da outra;
dei-lhe a pensar, que o Anjo de seu filho,
para o coroar mais cedo lhe inspirara
tão funesta ousadia, e pus-lhe aos olhos,
a sair das voragens do Oceano
ambos estes espíritos, volvendo
luminosos ao Céu.
Ouviu, e disse
cheia de comoção:
«¿Quem me assegura
«que entrasse já nos Céus?»
«O amor lhe torno;
«o amor que à sua mãe votou constante.
«Deus o disse: Este amor promete aos filhos
«vida longa na terra; e, pois que a sua
«foi breve, e Deus não falta, era forçoso
«que em troca deste bem maior lhe desse.
«Sofre pois com valor esta ditosa
«perda de um filho. ¡Oh! pobre mãe¡ ¡anima-te!
«volta serena aos usos teus antigos;
«procura as tuas forças; acendamos
«o teu lume; retoma a tua roca.
«Já cantaste fiando; fia, e reza;
143
«inda é melhor. Co fuso granjeavas
«seu enxoval; granjeia-lhe sufrágios. . .»....................................................................
*
Vi que o meu coração não me enganava.
A boa mãe bebia avidamente
a saudável esprança. Insto, reforço
afectos e razões; razões sem eles
¿que valem para as mães? Inda vem pranto,
mas já doce; inda vozes suspirosas,
mas de saudade humilde. O amor materno
(e não eu) de si mesmo enfim triunfa.
Há já lume na choça; brando sono;
e talvez sonhos ledos já volteiam
sob esse tecto...
*
¡Ah, mísera Francília,
¿ouviste? e era uma mãe a desditosa.
Ergue a fronte; e nas lágrimas acerbas
dessa mãe orfanada aprende. Luta
coa saudade feroz, contigo própria.
À tua dor acuda o pranto dela.14 de Novembro de 1831
Praia da Torreira
1 Alusão ao suicídio de Corélio Rufo, narrado por Plínio-o-moço na carta XII do Livro I das suas Epístolas.
OS EDITORES.